24 de maio de 2010

O BEIJO NO ASFALTO

O jornalista Pereira Rego, ao ser atropelado por um ônibus, pediu um beijo a uma jovem que passava. Esse acontecimento real, nas mãos habilidosas de Nelson Rodrigues, ganhou força trágica e virou a peça teatral O beijo no asfalto. Na trama do dramaturgo, o agonizante pede um beijo a outro homem, Arandir. Amado Ribeiro, um repórter inescrupuloso de Última Hora, vê tudo, anota nomes e endereços. O jornalista procura o delegado Cunha com quem vai transformar o acidente num escândalo para vender jornal e parar a cidade. O repórter e o delegado transformam o beijo de piedade num caso amoroso e, posteriormente, num crime. Arandir começa a ser perseguido em casa e no trabalho, até ficar sem saída.

Leia os comentários abaixo:


A experiência de Nelson Rodrigues
Tem gente que acha que tudo é notícia. Até beijo no asfalto. Beijo assim, de misericórdia, que acaba por virar prova de assassinato. Como se beijo de homem com homem fosse um crime, como se já não existisse tanta desgraça no mundo para colorir as primeiras páginas.
Nelson Rodrigues sabe que nem tudo é notícia, mas ele nem liga. Provoca o desespero, a desconfiança, o ciúme, a tragédia. Quer ver sofrer aquele que beijou um quase-morto no asfalto, acabar com seu casamento, trazer à tona a paixão secreta e proibida do sogro assassino. Beijo no Asfalto é uma experiência científica, afinal. Qual é a vida do ser na primeira página? Até quando a estrela dos jornais resistirá ser a manchete? Ser ou não ser o que conta a “realidade escrita”? Nelson Rodrigues está só testando, é cientista. Nelson Rodrigues é Amado Ribeiro.
Carol Gouvêa


O beijo para a morte
O beijo no asfalto é uma dessas histórias que se corre para saber o final, personagens enigmáticos tecem uma trama de vida real trágica em que tudo pode acontecer. Como qualquer obra de Nelson Rodrigues família, traição e morte estão presentes contrastando com amor e vida.
Talvez em 1961, quando a peça foi escrita naturalmente tenha causado surpresa. Hoje não é novidade um homem beijar outro, traição, nem a manipulação da mídia nos acontecimentos, talvez ainda haja um pequeno estranhamento quanto a incesto. Mas o que realmente nos prende a atenção é o modo com que Nelson Rodrigues brinca com os personagens, seus sentimentos e princípios, ao final concordamos com a morte de Arandir como a única saída. Nem mais sentimos compaixão, apenas um alívio. O mesmo beijo que condenou sua vida também o salvou. Só a morte o salvaria de uma vida hipócrita.
Luciana Arruda


Nelson Rodrigues brinca de Deus
Entre confusões amorosas, morais e sexuais, Nelson Rodrigues brinca de Deus, manipulando seus personagens a ponto de confundir o próprio leitor a respeito da culpa de Arandir no beijo e no crime. Com a competência que só o dramaturgo tem, o ápice da peça está no começo e também no meio e no fim. E não acaba depois que termina.
Ana Luiza Fernandes Oliveira


Como aquilo que cresce só porque pode crescer
Se Nelson Rodrigues ainda fosse vivo talvez se sentisse constrangido com a realidade atual. É provável que seu favoritismo por sexo, crime e escândalos, hoje se visse perdido frente à recorrente banalização do absurdo. Por isso é incrível que ainda hoje suas peças causem essa sensação distinta, como algo que vem de dentro e que não tem por onde sair. Desta forma é O beijo no asfalto. Uma situação simples que é transformada em um alvoroço, resultando em um desmanche de relações e certezas. Os personagens se vêem questionados, com raiva por não entenderem com o que estão lidando. A peça é mais uma de suas obras grossas em vocabulário – mesmo sem palavrões, em que toda a sujeira de um personagem é pega com uma pá e jogada na cara do leitor.
João Eurico Heyden Junior


Notícia de Última Hora
O beijo no asfalto é mais do que um simples beijo, como aqueles do tipo que são “dados por dar”. Nelson Rodrigues conta, com aquele jeitão que nos faz sentir cada sensação que os personagens sentem, e por vezes também nos coloca no lugar do personagem. A peça conta a história de um casal que vive como outro qualquer até o momento do beijo. Não o beijo que é dado por dar, de homem e mulher, aquela coisa de recém-casados, mas o beijo que se dá somente em quem está morrendo. A cena do beijo, lá, enquanto estava o morto estirado no chão acompanhado de seu suposto amante não é o ápice da história, e sim todo o resto que sucede ao fato. Quem vê fica com uma dó de Arandir... Parece até um parente próximo injustiçado, com uma mulher que a esta altura anda pouco companheira e beira o histerismo. Coisa pouca perto da tragédia toda.
Thayná Faria


Poeticamente trágico
O beijo no asfalto representa o típico estilo de Nelson Rodrigues, um estilo que traduz tragédias em um texto quase poético. Nelson Rodrigues narra fatos cotidianos com um envolvimento que se compara ao texto jornalístico, ele insere o leitor na cena que descreve. Demonstra também os sentimentos de forma exacerbada, mostrando conflitos psicológicos dos personagens contrastando valores e desejos humanos. Mariele Velloso


Nelson Rodrigues e sua inseparável máquina de escrever


Repugnância e atração
Nelson Rodrigues tem uma habilidade extrema de trabalhar esses temas controversos, que costumam causar repugnância e atração, transitando entre a violência e a sexualidade, além das verdadeiras mazelas sociais, como o preconceito, a falta de ética e a simpatia pela tragédia alheia.
Wanderson Antonio


Romance ou caos?
Nos dias atuais, o tal beijo não teria tanta repercussão. Na verdade, haveria muitos motoristas indignados por terem que ficar mais de duas horas em um engarrafamento causado por um casal escandaloso que, ao invés de chamar logo a ambulância e a polícia, faz melodrama no meio do caminho. Natasha Terra


Nelson e a fofoca irresistível
O fato - Arandir beija um atropelado agonizante em público - é um banquete para alimentar o desejo das pessoas de entrarem na vida alheia. A partir daí, as coisas vão tomando proporções maiores, sem possibilidade de freio. Começando pela vizinha que mostra à mulher o que o marido tinha feito e terminando pelo jornalista que cria manchetes para gerar maior interesse. É tudo isso em nome de uma curiosidade incontrolável.
Íris Pedini


O beijo conduz a caminhos diversos
0 beijo no asfalto leva o leitor ao mundo do superficial e do belo, instâncias emergidas do acaso que tem por papel lembrar a fragilidade da vida. O derradeiro beijo fomenta o abuso jornalístico, esquecido dos preceitos éticos e reforçador de preconceitos, da mesma forma que leva o homem a um contato mais verdadeiro e intenso com o outro e, portanto, com o eu. Enquanto um homem, o jornalista Amado Ribeiro, se afasta de qualquer reflexão sobre o que acontece na vida e vê no beijo homossexual a possibilidade de garantir o sucesso comercial, o homem que beija o ser em agonia tem uma experiência que o afasta das normas sociais e que o põe em contato com o puro, o latente e o belo lado da existência.
Ana Gabriela Oliveira


O gênio e a repetição
Nelson Rodrigues, na repetição de si mesmo, é sempre singular na maneira de tratar família, sexo e morte. Sua singularidade é uma espécie de loucura, uma inteligência absurda. O beijo no asfalto e seu desfecho surpreendente e deliciosamente “rodrigueano” não poderiam ser melhor, nem escrito por outra pessoa, quiçá parafraseado. O clima psicanalítico ajuda a criar uma dúvida constante sobre o comportamento do personagem Arandir. Ele teria beijado um desconhecido ou provocado um acidente para matar seu amante? Mas Nelson Rodrigues não deixa dúvida alguma quanto ao comportamento corrupto e imoral de Amado Ribeiro, o repórter, que desgraça uma vida por uma manchete. Mais uma vez a crítica de Nelson à imprensa, presente em tantas outras obras, como Viúva, porém honesta. É a repetição, assumida que permite ao gênio se confirmar gênio.
Violeta Cunha


Sexo, dor, castração
Pinceladas fortes numa tela em branco desnudam a bela face de Dorian Gray ao mesmo tempo em que torna o pintor amante platônico de seu modelo ideal.. Transposto para o decadente cenário rodrigueano, O Beijo no Asfalto desperta o amor de Aprígio pelo seu jovem genro Arandir, numa explícita crítica aos valores socialmente constituídos.
Douglas Caputo


Polêmica em foco
Temas polêmicos estão no cardápio do mestre Nelson Rodrigues. E não foi diferente na obra O beijo no asfalto. Selminha é a típica personagem que vê sua vida amorosa conturbada após saber da suposta traição de seu amado. Para enfatizar a polêmica, o autor faz questão de incluir o tema homossexualidade na trama, e desta vez, o beijo que causou a discórdia no relacionamento da personagem, é trocado entre o seu marido e outro homem e não com uma mulher, como era de se esperar. E para complicar ainda mais a situação, Nelson Rodrigues revela que o pai de Selminha sempre fora apaixonado pelo genro. É intrigante a maneira como a história é desenrolada. Fatos corriqueiros ganham ares de “diversidade” nas palavras do autor, ao serem encaixados temas “polêmicos” na trama.
Karen Abreu


Francisco Cuoco na montagem de O beijo no asfalto, em 1961

Um simples beijo
Nelson Rodrigues mescla literatura e jornalismo para expor o que ele chamou de uma tragédia carioca. A ética jornalística vai a xeque na peça escrita por alguém que conhece bem a profissão. O autor consegue inovar ao falar de clichês tão batidos e aproveita um simples beijo para transformar e expor uma realidade inerente à condição humana. Nelson brinca com as palavras e as coisas e mostra a vida como ela é.
Luis Gustavo Oliveira


Universal em sua singularidade
Os personagens são complexos em sua trivialidade. O ato de beijar o morto causa espanto, admiração e a, seguinte, exacerbação da homofobia. Nelson joga na cara dos leitores/espectadores a falsidade e a falibilidade do homem. Tem a coragem de mostrar o ataque repressor dos escondidos.
Marcelo Alves

Matéria de primeira, de matéria prima
Não escrevem contos porque atraem menos leitores. É isso o que leva pensar sobre os jornalistas a partir de Amado Ribeiro que, deslumbrado pelo poder e pelo controle das pessoas, torna uma matéria bruta da vida real e a lapida, transformando-a em pura ficção.
O gosto amargo e o cheiro repugnante da peça de Nelson Rodrigues afoita ainda mais aqueles que têm o germe da vingança e da revolta. O mocinho morre, o vilão se dá bem, e é isso que sempre acontecerá enquanto a massa for facilmente maleável por páginas impressas e enquanto o preconceito se procriar como ratazanas ameaçadoras.
Vinícius Tobias


Persuasão e sociedade
O beijo no asfalto Demonstra a capacidade de persuasão que possui o ser humano, o poder de transformar e criar aquilo que é mais viável, para si e para a sociedade, sem a menor preocupação com a veracidade dos fatos.
Suellen Passareli

Quarto poder
A tragédia parece guiada pelo pensamento que caracteriza a mídia como quarto poder: “se hoje surge um problema, amanhã eles arrumam outro pra gente esquecer o anterior”. Deturpando a verdade em seu favor, a mídia consegue conduzir facilmente a verdade e modificá-la. Tudo isso é claro, contando com uma pequena ajuda de força ainda maior, corrompida e suja: a da polícia.
Ruzza Lage Valério

12 de maio de 2010

DECLARAÇÃO DE AMOR


Essa é uma declaração de amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter sutileza e de reagir, às vezes, com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de sentimentos e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo.

Às vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado. Às vezes se assusta com o imprevisível de uma frase. Eu gosto de manejá-la – como gostava de estar montada num cavalo e guiá-lo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às vezes a galope.

Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos. E este desejo todos os que escrevem têm. Um Camões e outros iguais não bastam para nos dar para sempre uma herança de língua já feita. Todos nós que escrevemos estamos fazendo do túmulo do personagem alguma coisa que lhe dê vida.

Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do encantamento de lidar com uma língua que não foi aprofundada. O que recebi de herança não me chega seu eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me perguntassem a que língua eu queria pertencer, eu diria inglês, que é preciso e belo. Mas como não nasci muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro para mim que eu queria mesmo era escrever em português. Eu até queria não ter aprendido outras línguas: só para que minha abordagem do português fosse virgem e límpida.



(Clarice Lispector, Jornal do Brasil, 11 de maio de 1968. In: A descoberta do mundo, p. 100-101)

Herói politicamente incorreto

Por Thayná Faria e Wanessa Fagundes



Herói por acidente, comédia dirigida por Stephen Frears, é mais ou menos o que o próprio título diz: um homem que, por força do destino, se encontrava na hora e no local certos para salvar as vidas de 54 pessoas que sofreram um acidente de avião.

Bernard - ou 'Bernie' - La Plante (Dustin Hoffman) é um tipo de vagabundo sem perspectivas que vive dando golpes para levantar algum dinheiro, porém acaba sendo pego e corre o risco de ir para a prisão. Aconselhado por sua inexperiente advogada recém formada, após o julgamento e uma iminente condeção, La Plante tenta passar a imagem de bom homem vítimado pelas circunstâncias e para isso tem que se reaproximar de seu filho Joey, um menino de 10 anos que alimenta ilusões heróicas sobre o pai.

Certo dia, enquanto Bernie está a caminho da casa de Joey, algo pouco provável acontece: um avião com passageiros cai à sua frente no meio da estrada. Meio atordoado, La Plante vai até o local e constata que os passageiros estão vivos, mas presos dentro do avião em chamas. Relutante, ele tenta abrir a porta para que as pessoas simplesmente saiam, mas acaba se envolvendo em um resgate que acaba se tornando um acontecimento histórico. A forma como Bernie reage diante da situação é engraçada, visto que diante da situação caótica sua maior preocupação era encontrar seu sapato perdido na confusão. Entre as 54 pessoas salvas, estava a repórter Gale Gayley (Geena Davis), que, por ser extremamente conhecida e influente, após ser salva, se empenha em apurar - e claro, publicar - os fatos e encontrar seu herói.

Após o acidente, Bernie se atrasou mais uma vez, decepcionou o filho e foi ainda desacreditado pela ex-esposa que o põe para fora. Apenas John Bubber (Andy Garcia), um amigo sem teto, acredita em sua história e tenta fazer com que La Plante se apresente e conte à população e à imprensa o que aconteceu. Porém, Bernie, que não é exatamente uma pessoa má, mas tem um “que” de mesquinho e egoísta, tem como lema segundo ele próprio a “discrição” e se recusa ir à publico, contrariando todas as espectativas que neste momento levam a crer que La Plante se aproveitaria da situação para obter alguma vantagem. A história muda de figura quando o canal de TV onde Gale trabalha oferece U$$ 1 milhão para que o herói desconhecido apareça, e Bubber assume o lugar de La Plante, que fica enfurecido.

O filme utiliza uma forma de apresentação dos personagens claramente calcada em estereótipos. Tal ação pode ser constatada a partir do jeito vagabundo do personagem principal, dos lugares que ele frequênta, no filho ansioso por um pai presente, na ex esposa histérica e preocupada, e principalmente nos personagens do meio jornalístico. Gale Gayley, assim como toda equipe jornalística do canal 4, por vezes têm atitudes anti-éticas em relação ao exercício de sua profissão ignorando fatores ético-sociais, tais como as dificuldades diversas, desde as de cunho econômico até o sensível estado psicológico do ser humano envolvido em suas reportagens, preocupando-se somente com o sucesso e a grande repercussão da matéria. Somente após um envolvimento pessoal com seu suposto salvador surge uma espécie de crise de consciência.

Por fim, permanece o drama: todos saberão afinal a identidade do verdadeiro herói ou continuarão acreditando na versão falsa, porém mais convincente? Com o decorrer do filme o drama de Bernie, ao mesmo tempo que sensibiliza o espectador pela injustiça cometida contra ele é relevante em comparação à conduta de Bubber, que se comporta como um verdadeiro herói – a não ser pelo fato de ter usurpado o lugar do “amigo” – apoiando doentes, sem teto e outros necessitados.

Com um roteiro divertido, “Herói por acidente” é um filme inteligente que aborda dentre todas essas questões morais e outras ligadas também à imprensa e a manipulação que esta exerce sobre o imaginário popular.



5 de maio de 2010

Alô, alô Terezinha: o brilho decadente de uma estrela

Por Douglas Caputo e Wanderson Nascimento


As coloridas décadas de 1970 e 1980 sublinharam a ascensão do popular e do humor fácil. O apresentador Abelardo Barbosa, o Chacrinha, expressão máxima dessa tonalidade, emprestou o estridente som de sua buzina a esta realidade que pescava bacalhaus e descascava abacaxis num palco armado para divertir através do grotesco.
O contexto político da época foi marcado pela claustrofóbica censura dos governos militares. Alheio a esta conjuntura, Chacrinha encenava nas tardes de sábado o colorido país em que todos tinham voz. Calouros aspirantes a cantores empunhavam o microfone, para o bem ou para mal, o último hit da moda.


No documentário Alô, alô Terezinha, o diretor Nelson Hoineff não entra no mérito da Ditadura. Mostra Chacrinha às voltas com talentos, bizarrices e beldades quase nuas. Não por acaso o filme, em uma hora e meia, dedica-se ao depoimento de calouros ressentidos, chacretes decadentes e cantores populares, como Roberto Carlos, Jerry Adriani e Wanderlei Cardoso que se projetaram por meio do Cassino e da Discoteca do Chacrinha.

Os cenários do documentário nem de longe lembram o cintilante estilo do Velho Guerreiro. Passa-se em subúrbios pobres do Rio de Janeiro e de Recife de 2007, com pessoas frustradas pela buzina da reprovação ou com ex-assistentes de palco decaídas, velhas e amargas com o anonimato, com a pobreza e com os rentáveis amores perdidos.

Mas a dura realidade de mais de duas décadas após a morte do apresentador é atenuada. O cantor Alceu Valença relata que “o chão de Chacrinha foi a cultura popular, foi o frevo, foram as marchinhas de carnaval, foram os pastoris”. O filme mostra esse lado positivo do Velho Guerreiro através de cenas de um bom arquivo e depoimentos de pessoas que deram certo graças ao programa, como a ex-chacrete Rita Cadillac, que ascendeu graças ao apelo sexual que produz até hoje na mídia, e o cantor Fábio Júnior.

O filme provoca uma miscelânea de sentimentos que vai do riso à comoção, do asco à piedade. Aos momentos hilários, juntam-se os tristes. O ex-calouro Almir dos Santos, fã de Agnaldo Timóteo, é um estereótipo ridicularizado socialmente, excluído pela lancinante buzina de Chacrinha. No filme, contudo, canta sua música inteira e é aplaudido pela pequena plateia que lhe assistia. Se Chacrinha ficou conhecido por apadrinhar o Tropicalismo, não faltam acusadores no documentário das crueldades do apresentador. Para muitos ele simplesmente ridicularizava e tolhia os sonhos de populares que se arriscavam à sua buzina ácida.

O documentário Alô, alô Terezinha mostra os matizes de uma época em que a o brilho ofuscante prevalecia. Camuflava-se a realidade nacional nas tardes de sábado com o sonho de uma vedetização para poucos escolhidos. Por isso, rever as peripécias de Chacrinha significa revisitar um apresentador explorando estereótipos para provocar o riso, fazendo uma exposição escarnecedora de calouros desdentados, gays, gagos, feios, (ou todos esses atributos juntos) e ridicularizando os que levavam um troféu-abacaxi.

30 de abril de 2010

Ideologia regada a sangue

Por Natasha Terra e Karen Abreu

Lançado em 1984, sobe a direção de Rolland Joffé, Os Gritos do Silêncio (The Killing Fields – Inglaterra) é uma produção baseada em fatos reais, desenvolvida no contexto da guerra civil do Camboja, abordando a trajetória de dois jornalistas envolvidos na cobertura dos trágicos acontecimentos.

O jornalista do The New York Times, Sydney Schanberg, (Sam Waterston) passa uma temporada em Camboja na parceria do guia e repórter local Dith Pran (Haing S. Ngor) para realizar matérias e manter informada a população americana sobre o sofrimento dos cambojanos.

O diretor consegue mostrar a importância dos meios de comunicação em situações de conflito e desespero, pois é através de jornalistas que a população consegue manter-se informada a respeito dos acontecimentos globais. O esforço de Schanberg é bastante enfatizado, uma vez que ele precisa enfrentar autoridades e lugares de riscos para conseguir fontes exclusivas e oficiais. Além disso, o jornalista consegue muitas informações sem confrontar o Código de Ética.

Os jornalistas não se intimidaram com as dificuldades oferecidas pelo terreno, pela briga e pela autoridade durante a luta armada e persistiram em suas buscas por novidades arriscando suas vidas. Diante de tal situação eram obrigados a se refugiarem em hotéis pequenos e trabalhar em sigilo, mesmo assim as notícias não deixavam de ser enviadas continuadamente.

Após se separarem em razão da retirada das tropas americanas, Schanberg volta aos Estados Unidos, onde recebe prêmios por sua bravura e responsabilidade, mas não deixa de procurar por seu amigo na Ásia. Nesta parte do filme, localiza-se um grande clichê: o americano que retorna como herói e o país comunista que passa a ser visto com inferioridade.

O clichê ilustra o etnocentrismo tão conhecido pelos espectadores em filmes americanos, o estadunidense salva a pátria ao se arriscar no campo de batalha para denunciar e tentar salvar o povo sofredor e necessitado das garras dos comunistas tiranos. Em Os Gritos do Silêncio, esta superioridade americana é enfatizada, principalmente, após a separação, quando Pran sofre calado as ameaças e imposições feitas pelos Khmer Vermelho, de um lado o Schanberg ganha prêmios e procura pelo seu amigo, de outro o asiático tentando sobreviver escondendo seus conhecimentos e sua história de vida.

29 de abril de 2010

A tênue linha entre realidade e ficção

Por João Eurico Heyden e Marcelo Alves

De modo geral, a complexidade do mundo, somada à separação temporal e espacial entre as instâncias de produção e consumo da mensagem, torna fácil a criação de grandes mentiras nos meios de comunicação de massa. A mídia possui grande poder na manipulação de fatos, e, consequentemente, ainda hoje existem teorias conspiratórias sobre a veracidade de acontecimentos como a chegada do homem à Lua ou a Guerra do Golfo. A manipulação de ideias a partir de veículos midiáticos é antiga, mas mesmo um tema tão gasto como este pode nos trazer dúvidas e/ou risadas, como é o caso do filme Mera Coincidência (Wag the Dog).

O diretor Barry Levinson brinca com o espectador, utilizando de um roteiro que, de cena a cena, nos faz duvidar de nossa própria compreensão de verdade. A história é a seguinte: o atual presidente dos EUA está tentando se reeleger. Faltando poucos dias para a eleição, ele vira protagonista de um escândalo sexual, envolvendo uma menina que visitava a casa branca.


Para abafar o caso, o candidato chama para consertar seu erro um homem de confiança: Conrad “Connie” Bean - muito bem interpretado por Robert de Niro, que, como grande conhecedor do sistema, resolve criar um fato ainda maior para ocupar a mídia e a opinião pública. O resultado é uma guerra literalmente inventada: um espetáculo visual, produto de uma reunião das idéias de Conrad com a genialidade do produtor de cinema Stanley Motss (Dustin Hoffman). Entre os dois, e um pouco perdida com tal situação, encontra-se a assessora do presidente, Winfred Ames, interpretada por Anne Heche. De certa forma, ela representa o próprio espectador do filme, ao não acreditar que tamanha mentira enganaria tão facilmente ao público e à mídia.

Na guerra arquitetada, foi escolhido como inimigo dos EUA a totalmente figurante Albânia. Mais de uma vez Winfred questiona se as pessoas iriam engolir a mentira. Conrad sempre responde da mesma maneira irônica: “está na TV, não está?”. Crítica sutil e inteligente do diretor ao batido pensamento de que a realidade reproduzida na TV condiz com a cotidiana. O que se mostra totalmente infundado em função das inúmeras manipulações que o vídeo pode sofrer. Exemplo claro foi a cobertura que a Rede Globo fez do Movimento Caras Pintadas, reinterpretando-o como se fosse uma festa pelo aniversário da cidade.


Mera Coincidência reproduz como a assessoria de um candidato à presidência pode deixar vazar informações ou plantar falsas notícias nas mídias para conduzir a atenção do público. E como mundo se mobiliza a partir de informação. A palavra, virtual, gera efeitos no mundo real. As mídias publicam os fatos sem apurar, em busca do furo, do marketing, da fama efêmera. A concorrência entre elas em nada contribui para a diversidade de posições ideológicas. Pelo contrário, estimula a cópia recíproca e a pressa na apuração, a prisão ao instantaneísmo. Walter Benjamin já dizia que, na mídia, a informação só tem interesse quando novidade.

O filme também pode ser visto como um alerta, um estímulo a uma leitura mais crítica e consciente dos fatos noticiados, tanto por agências do governo quanto pela mídia em geral. Afinal, tanto um quanto o outro pode criar suas realidades, mas ainda é o povo/espectador quem decide se acredita ou não. Há, na verdade, uma luta pela opinião pública, que pode ser revertida em votos e índices de aprovação.

Vale também destacar duas atuações memoráveis. Primeiro a de Dustin Hoffman, em mais um papel genialmente inteligente, que por si só já valeria ver o filme. E a segunda é a de Woody Harrelson, interpretando o soldado criado pela produção da guerra, para ser o herói símbolo desta cruzada realizada pelo presidente americano contra as “forças terroristas albanesas”. Mais uma vez, Harrelson toma às vezes de um personagem que beira à insanidade, tal qual já fez em Assassinos por Natureza e, mais recentemente, na comédia Zombieland.

É claro que o filme é falho em alguns aspectos. Por exemplo, ao considerar que as pessoas assistiriam à cobertura desta “guerra” de maneira totalmente acrítica, e que os jornalistas colocariam todas as suas fichas em rumores, sem ao menos confirmarem por eles mesmos a história. Aspecto que pode ser um exagero estilístico. O filme caricaturiza o jornalista como uma massa, um profissional que apenas copia em sua busca frenética pelo furo, e sem focos de resistência, já que ninguém sequer suspeitou da farsa, principalmente o povo que sequer teve uma cena sua.


Psicopatas da mídia

Por Ana Luiza Fernandes e Mariele Velloso


Com uma proposta audaciosa e provocativa, o diretor John Herzfeld alcançou em 15 minutos (2001) o mérito de produzir um filme policial que envolve o espectador ao tratar não somente de violência, mas também de uma critica à mídia americana. A trama é excitante e exagerada, buscando ilustrar sem disfarces a ganância dos noticiários norte-americanos com recursos cinematográficos inusitados.

O filme narra a história de dois estrangeiros da Europa Oriental que vão aos Estados Unidos por diferentes motivos. Emil (Karel Rodes) busca um acerto de contas com seu ex-parceiro do crime e Oleg (Oleg Taktarov) sonha ser um famoso diretor de cinema. Ao encontrar com seu ex-parceiro, Emil descobre que ele havia gastado todo o dinheiro que lhe devia. Emil elimina o ex-parceria e sua companheira. Com uma câmera roubada, Oleg filma todo o crime pensando em produzir um filme com a sua própria direção e a atuação do amigo.

Motivado pela imprensa americana, Emil tem uma idéia ao assistir um programa televisivo que narrava a história de um assassino que se livrou da pena por ser considerado louco, e com isso ganhou fama e dinheiro. Seu objetivo é usar as imagens de assassinatos para se promover. Então, sua ultima atuação seria matar o famoso policial Eddie Fleming (Robert De Niro).

Os personagens são atraídos aos Estados Unidos pela mistificação que a indústria cultural, principalmente a publicidade e o cinema, constrói acerca da vida nesse país .Eles acreditavam que iriam usufruir das vantagens dos cidadãos americanos, porém o “sonho americano” não é para todos. Os estrangeiros, neste caso do Leste Europeu, são estereotipados pelo país como marginais que não fazem parte dessa sociedade excludente.

A trama causa várias sensações aos espectadores, desde a apreensão das cenas mais violentas até momentos de crítica e humor. Com a trilha sonora que procura ambientar o espectador ao clima da cena, a música se destaca como um componente marcante do filme. São usados barulhos inusitados como o som de animais em cenas agressivas, a música clássica agonizante na hora do conflito individual do psicopata Emil e o som acelerado de tambores em cenas de perseguição. Outros recursos utilizados no filme são as variações das cores usadas nas gravações de Oleg e a forma como ele filma. São usados truques como saturação, sépia e negativo nas cores das imagens dos crimes além da filmagem confusa feita por ele, disfarçando e atenuando a violência das cenas.


A crítica do filme é contra a imprensa americana e a exaltação às celebridades. Na película usa-se um programa fictício chamado Top Story para ilustrar como a mídia noticia fatos violentos para ganhar audiência. Com exagero, como preceitos éticos sendo esquecidos pelas empresas jornalísticas americanas. Quanto à exaltação das celebridades, a história alerta como a perseguição pela fama tornou-se um ideal para as pessoas que agem muitas vezes sem escrúpulos para alcançá-la. Esse ideal foi previsto pelo pintor e cineasta Andy Wahrol, que afirmou que “in the future everyone will be famous for fifteen minutes” (“no futuro, todo mundo será célebre durante quinze minutos”). A trama ilustra essa massificação da produção cultural e seu título faz uma analogia a essa frase.

O filme de John Herzfeld é interessante para quem procura um entretenimento crítico que se difere das produções clássicas de Hollywood.